BOLÍVIA EM COMPASSO DE ESPERA
Ricardo Cavalcanti-Schiel
Há exatamente um mês, o estado da imprensa internacional com relação aos acontecimentos políticos na Bolívia era de franca excitação. Como fenômeno de mídia, a posse do Presidente Evo Morales só encontrou similar próximo neste país por ocasião da morte do Che, em 67. Como comentava um jornal local, a Bolívia, por alguns dias, se transformava na meca da esquerda mundial. De fato, ver no balcão do palácio presidencial, assitindo a um desfile de tropas, Evo ao lado do Comandante Chávez e do legendário Comandante salvadorenho Schafik Handal não deixava de ser tocante para qualquer um que guarde alguma veleidade socialista latinoamericana. Lula, claro, preferiu ir para o hotel, para se preparar para o coquetel que se serviria mais tarde, enquanto Evo sairia dali, escoltado por uma guarda de mineiros e índios, para uma festa popular embandeirada pelas flâmulas das organizações sociais bolivianas, na legendária praça de San Francisco, palco irremediável de qualquer batalha campal que se trave em La Paz por conta de algum protesto popular (é certamente a praça mais “gasificada” do mundo ? como os bolivianos usam dizer quando se referem ao gás lacrimogênio.
A comoçao daquele momento, no balcao de um palácio governamental que um dia foi incendiado numa dessas rebeiões costumeiras da história política boliviana, seria ainda mais significativa quando se soube, depois, que aquela tinha sido a última aparição pública do Comandante Schafik, pois ele morreria, fulminado por um ataque cardíaco no momento em que o avião de volta a seu país aterrizava em San Salvador.
Momentos comoventes, sem dúvida. No dia anterior, Evo havia passado por um rito político-exotérico nas ruínas de Tiawanaku, mas sequer isso ganhou um tom caricatural, como uma encenação exotérica similar, feita por Alejandro Toledo nas ruínas de Machu Pichu, ao assumir a presidência do Peru em 2001, como que prenunciando a caricatura que viria a ser o seu próprio governo, melancolicamente epilogado, agora, por um tratado de livre comércio com os Estados Unidos, que ameaça atar o futuro do Peru a uma agenda comercial que o colocará ao largo da Comunidade Andina e, obviamente, do Mercosul e da América do Sul. E a cerimônia em Tiawanaku só não foi mais uma caricatura porque ali não estava um “cholo” querendo redimir sua parcela de “sangue indígena” como se fosse uma grife, mas alguém que se forjara nas lutas populares, que jamais se rendera a uma garrafa de whisky numa reunião com a direção de uma Rede Globo, e que dava mostras de que poderia até se equivocar, mas não trair suas origens, seus companheiros e seus programas históricos. E também não foi uma caricatura porque ali os movimentos populares de várias partes do mundo e muitos movimentos indígenas saudavam algo que toda essa gente muito escassamente tem a oportunidade de saudar: um representante seu no poder. Toda a posse de Evo foi, mais que tudo, isso: uma festa da representatividade; e não um rapapé do clube do poder das velhas elites oligárquicas das nossas republiquetas continentais (e não importa o tamanho territorial dessas republiquetas).
Como antropólogo que há vários anos pesquisa na Bolívia, que acompanhou todas as “guerras” populares (a da água, a do sal, a do gás) que derrocaram a república neoliberal e a democracia pactada, que estava no campo, em uma comunidade indígena, quando esses mesmos indígenas bloquearam todas as estradas do país para defenestrar o “gringo” Gonzalo Sánchez de Lozada nas jornadas de outubro de 2003 (e que não foi retirado do país pelo avião da FAB), acompanhei atentamente também ese momento, permitindo-me minha quota particular de comoção, mas também temperado pelo distanciamento crítico, tendencialmente objetivista, que se aprende a cultivar quando se é antropólogo e quando se convive com as especificidades da cultura política (ou das culturas políticas) deste país. Havia chegado alguns dias antes das eleições, e pude acompanhar, pela televisão do quarto de hotel em Cochabamba, a transmissão local ao vivo do comício de encerramento de campanha de Evo, debaixo de chuva. De lá para cá as chuvas têm fustigado a Bolívia, caindo com especial intensidade nesta estação naturalmente chuvosa, causando desabamentos na área montanhosa, inundando regiões no oriente baixo e plano do país, e fazendo o próprio Evo andar de helicóptero para lá e para cá. Neste momento, quando escrevo estas linhas, na sala de pesquisa das modernas instalações da Biblioteca Nacional, na velha, modorrenta e socialmente decadente antiga capital, Sucre, também nuvens intensamente escuras avançam desde os cumes do Churuquella, grande maciço montanhoso que os antigos indígenas reportavam como uma divindade. Esses mesmos indígenas andinos acreditam ou acreditavam que a sucessão das eras ocorre de uma forma cataclísmica, como uma reviravolta de mundos, um “pachakuti” (literalmente, em quéchua, “volteio do mundo”), na qual muitos relatos míticos costumam apontar a incidência de um elemento em especial, o fogo; de tal forma que erupções vulcânicas nos Andes já foram reconhecidas como a virtual emergência de um “pachakuti”. Concepções cosmológicas como essas cultivaram um fundo de milenarismo em muitas concepções políticas andinas, que, ora aqui ora acolá (basta ler o clássico “Buscando un Inca”, de Alberto Flores Galindo), insistem em se manifestar na história política dessas sociedades, e têm, como seu correlato discursivo, um notável vezo mesiânico. Mas, de fato, o que marca uma verdadeira reviravolta é o fogo, e não toda esta água que cai sobre a Bolívia.
Há um mês da posse de Evo, também se arrefeceu, naturalmente, a curiosidade da imprensa internacional, e em lugares como a internet permanece ressoando, aqui e ali, um texto comovido de Eduardo Galeano, sobre este momento “étnico” de especial atração da vida política boliviana (como se toda ela não fosse “etnicamente” marcada, sulcada, lanhada), enquanto a chuva cai, insistentemente, sobre essa Macondo no coração da América, dissolvendo grossas paredes de adobe, sejam camponesas sejam senhoriais, porque ambas, muitas vezes, usam o mesmo material. Claro, não é a mesma chuva que metaforicamente cobria, como uma nuvem sufocante de mistificação, a Argentina menemista, na antológica ilustração que lhe fez o cineasta Pino Solanas. Mas é uma chuva que, arrefecidos também eventuais ânimos messiânicos, nos faz pensar sobre a orteguiana (ou macondiana?) circunstância das nossas sociedades latinoamericanas.
Passado um mês da posse de Evo, nomeado um gabinete extremamente heterogêneo, em nome (supõe-se) de uma representatividade social ampliada, mas pouco ou nada articulado com um programa de governo, e conhecidos os primeiros movimentos táticos da velha direita, acantonada agora junto à oligarquia empresarial e latifundiária de Santa Cruz, no oriente do país, parece cada vez mais instigante perguntar-se por que um presidente eleito com a mais arrazadora votação proporcional dos últimos 30 anos de história boliviana, liderança inconteste de um partido que conquistou 55,4% da Câmara dos Deputados, 44,4% do Senado (totalizando 53,5% do Congresso), além da presidência dessas duas casas, parece iniciar o seu governo destituído de iniciativa política e surpreendentemente acossado pelas reivindicações autonomistas da oligarquia de Santa Cruz, quando, por outro lado, ascendeu ao poder catapultado pelas expectativas de uma agenda de transformações, explicitada de forma muito contundente pelos movimentos populares nos últimos 5 anos, que derrubou dois presidentes da república e que conquistou uma efetiva hegemonia discursiva na agenda política nacional. Não se pode dizer que, como Hernán Siles Suazo em 1982, o mais esquerdista dos presidentes eleitos pelo velho e hoje moribundo Movimento Nacionalista Revolucionario (MNR), Evo tenha se deparado com uma situação macro-econômica frágil e desequilibrada, que dê campo de ação a um “golpe de Estado empresarial”, como ocorreu com o próprio Siles Suazo e com Alfonsín, na Argentina, pois os indicadores estritamente financeiros de desempenho geral, de déficit fiscal e de inflação indicam o contrário. Tampouco enfrenta-se com um feroz patrulhamento da esquerda sindical, como fazia a Central Obrera Boliviana (COB) naquele início de década de 80, nem com uma posição pouco confortável no Congresso, pois, pela primeira vez na história democrática boliviana, um só partido, o Movimiento al Socialismo (MAS), de Evo, detem o controle do Legislativo, sem necessitar de coalizões. ¿Qué pasa? Então, com relação a esses primeiros sinais do pré-incensado governo de Evo Morales?
Em agosto do ano passado, às vésperas da campanha eleitoral, o sociólogo Alvaro García Linera, ex-guerrilheiro, ex-preso político, intelectual perspicaz, mais destacado ideólogo do MAS e atual Vice-Presidente da República, publicava um artigo numa coletânea, em que anotava a respeito das eleições vindouras: “Está claro que nenhum líder nem movimento sócio-político vai conseguir por si só superar a marca de 20% do eleitorado nacional”. Por isso, García Linera imaginava uma ação de conformação de frentes parlamentares e o que ele chamou de uma “estratégia expansiva de acumulação de forças políticas”. Evo obteve 54% da votação, o MAS conquistou o controle do Congresso,e, mesmo em Santa Cruz, reduto da direita, onde o candidato presidencial do MAS foi demonizado mais que em qualquer outra parte, o partido obteve um terço dos votos (contra apenas 18% nas eleições municipais de 2002), apenas 9% atrás da votação da direita. Há poucos meses da eleição, ao que tudo indica, o MAS não esperava chegar ao poder por uma autopista tão bem pavimentada. É como se a vitória chegasse a descompasso dos planos políticos mais otimistas. Para um partido fundado sobre lutas reivindicatórias e um programa que parece, antes, um conjunto de palavras de ordem, a vitória eleitoral parece até ter chegado rápido demais.
Nesse mesmo ensaio, García Linera considerava que naquela “estratégia expansiva de acumulação de forças políticas”, para um movimento social que se assenta sobre a base material da economia familiar e com escassos horizontes de experiência gerencial mais ampla que, eventualmente, o sindicato, era preciso consolidar um “suporte administrativo” que expressasse experiências próprias de gestão, pois “o tema do poder estatal não é tão somente um tema de resistência, mas de soberania geral; não é um tema de reivindicação, mas de comando e execução da coisa pública”. Diferentemente do caso de um PT, por exemplo, que, sob a batuta de um gângster stalinista como José Dirceu, sacrificou todo o seu capital político-administrativo em nome de um estrito e estreito projeto de poder, o MAS simplesmente não dispõe desse mesmo capital. Claro que o argumento da “experiência administrativa”, seja num sentido positivo (“nós temos!”) seja num sentido negativo (“eles não têm!”), é extremamente traiçoeiro, e que a política não se reduz, de maneira alguma, à simples execução da técnica ou, na melhor das hipóteses, de uma “técnica do bom governo”. Na verdade, problemas podem surgir exatamente quando política e técnica entram em rota de colisão para definir seus domínios de competência, e pode-se dizer que constituem-se em duas classes de mistificação simétricas tanto a presunção de que a técnica possa gerenciar a política quanto a demagogia de que a política possa dispensar a técnica.
Durante todo o período das chamadas “reformas estruturais”, a arenga neoliberal propugnava o receituário ortodoxo da economia neoclássica, que, aplicado corretamente, seria a chave do paraíso para o progresso econômico “e” social. O império dos técnicos deu passo a uma concepção de execução da política e gestão da coisa pública caracteristicamente verticalizadas, onde algumas centenas de milhões de dólares foram gastos com consultorias e nenhuma atenção dada à consulta social. Obviamente, isso também se insere na lógica oligárquica do mais profundo desprezo por uma eventual democratização social, mas no período neoliberal esse requinte de tecnicismo deu origem a uma casta de intelectuais subservientes e uma malta de técnicos de gabinetes, alimentados tanto por gordos salários financiados pelas agências internacionais quanto pela onipresente corrupção boliviana. É absolutamente compreensível que toda a militância do MAS nutra por essa gente a mais profunda desconfiança. Entretanto, uma coisa é pôr os técnicos em seu lugar, outra é recusar sumariamente a técnica.
Uma das atitudes mais impressionantes da militância do MAS após a ssunção de Evo foi a de tomar alguns gabinetes governamentais e expulsar de lá os seus ocupantes, achando-se na condição de proprietários senhoriais do governo. No fundo, essa atitude apenas replicava, de forma um tanto mais grotesca, o que sempre fez o velho clube do poder oligárquico, com seu loteamento de cargos e seu usufruto patrimonialista da máquina do Estado. No entanto, soa no mínimo desconcertante que um partido que tantas vezes falou em institucionalizar essa mesma máquina pública agora resolva assaltá-la com seus quadros. E essa tem sido uma desagradável constante nos movimentos de bastidores masistas, já não mais como uma farsa bonapartista de assalto ao palácio de inverno, mas sob a forma de uma surda luta de posições (com fortes tintas individualistas e caudilhescas) no interior do partido, para ocupar os espaços da máquina pública. E aqui entra em cena um outro componente não apenas masista, mas que percorre, de forma às vezes sutil às vezes gritante, boa parte da pregação política indígena: a marca de um fundamentalismo etnicista. E aqui o melhor caminho para entendê-lo é retomar aquelas observações aventadas logo antes sobre a persistência de traços milenaristas e messiânicos num certo discurso político andino (ou andinista). O que eles conformam é expresso sob a forma de uma retórica do retorno radical a uma pureza índia, vislumbrada na imagem ideal de um Tawantinsuyu (o império incaico) reconstruído, ou um Qullasuyu (o quadrante meridional, ou seja, boliviano, desse império) reconstruído. E isso é equacionado como um Estado índio depurado de “q’aras” (“brancos”, num sentido pejorativo). A presença desse fundamentalismo etnicista no MAS não é desprezível e, na verdade, joga um peso considerável no complexo de tensões que abarca as disputas internas em torno da ocupação da máquina do Estado. Um dos assessores mais próximos de Evo, considerado por alguns o Rasputin do governo, um homem das sombras chamado Ivan Iporre, é uma das peças-chave dessa linhagem fundamentalista. Ninguém chega a Evo sem passar por ele, e ele é também homem da imediata proximidade de um desses profetas políticos obscuros do milenarismo messiânico, o peruano Carlos Milla, que exerce notável influência em certo meio universitário de El Alto, bastião da guerra do gás que derrubou Gonzalo Sánchez de Lozada. Teria sido essa vertente que idealizou a cerimônia de Tiawanaku, para Evo receber as bênçãos dos sacerdotes amawtas.
Mas o efeito concreto desse fundamentalismo etnicista, fortemente anti-intelectualista, orientado ou difuso, no governo do MAS, é que sua invectiva de pureza índia, somada às disputas corporativas internas, conspiram para tornar a máquina pública uma grande colônia de fiéis, que alguns poucos conhecedores críticos da situação pejorativamente se referem como um “talibanato”, a expensas dos quadros técnicos. O resultado previsível é que o delineamento de políticas passa então a “escorrer” de uma necessária precisão técnica para uma etérea imprecisão de populismos e imediatismos duvidosos. A definição dos quadros de governo, hoje, encontra-se nesse pé, em meio a um jogo de tensões de bastidores, que ninguém ainda sabe em que vai resultar. Alguns ministérios parecem estar imobilizados, em suspensão, como o Ministério da Educação, que se opõe à Reforma Educacional implantada nos governos neoliberais, mas não tem nenhuma proposta alternativa, não mobiliza seus técnicos, que conhecem à exaustão o manejo do sistema educacional, tampouco outros possíveis colaboradores com qualificação e experiência técnica, independentes e antagônicos ao atual modelo, e sujeita-se a receber uma proposta fechada da CSUTCB (Confederación Sindical Única de los Trabajadores Campesinos de Bolivia).
Na verdade, não são pequenos os riscos de o governo Evo degringolar numa indefinição populista. Contra isso conta sua âncora de racionalidade, o Vice-Presidente. Se o governo conseguir incorporar quadros técnicos, não para reiterar o modelo do sistema neoliberal, mas para colocá-los nos seus devidos lugares, possibilitando espaços de mediação com as demandas políticas e otimizando a racionalidade da gestão pública, certamente terá vencido um dos seus maiores desafios, poderá pensar séria e conseqüentemente na institucionalização da máquina pública e, com uma vigilância política decidida, romper o círculo vicioso de corporativismo e patrimonialismo. Ninguém sabe se isso é efetivamente factível, e a cultura política boliviana não inspira nenhum otimismo nesse sentido. Em não muito tempo saberemos se, para além da titânica tarefa legislativa, “refundar” o país por meio de uma nova constituição, o governo Evo mostrará sua viabilidade administrativa, sua capacidade de iniciativa política e a possibilidade efetiva de condução de um programa de transformações sociais. Por enquanto, a Bolívia, sob chuva, está em compasso de espera.
O caso LAB
Neste primeiro mês de governo Evo, o acontecimento nacional mais marcante além das chuvas foi a crise da empresa aérea mais importante do país, a LAB (Lloyd Aereo Boliviano). De todas as privatizações realizadas pelo “gringo” Gonzalo Sánchez de Lozada, a da LAB foi a mais escandalosa negociata de alienação do patrimônio público, a ponto de tornar-se, na prática, uma cessão patrimonial a fundo perdido. Com um patrimônio calculado em 66 milhões de dólares à época da privatização (1), foi entregue a velhos conhecidos das páginas policiais brasileiras, os Canhedo, controladores da Vasp. As investigações realizadas por técnicos governamentais à época da presidência de Carlos Mesa indicam que Sánchez de Lozada cedeu a todas e quaisquer exigências dos Canhedo, alterando contratos e emitindo decreto atrás de decreto para adequar-se às demandas dos nossos nobres empresários privados, que, em pagamento e cumprimento de suas obrigações entregaram... papéis podres. Durante os cinco anos em que permaneceu nas mãos dos Canhedo, a LAB foi impiedosamente dilapidada. Acossados por uma campanha midiática igualmente impiedosa, os Canhedo viram-se obrigados a vender seu pacote acionário por 1 milhão de dólares ao empresário de mídia dono do jornal La Razón (velho bastião da direita mais conservadora) e da rede de televisão ATB, no que uma comissão parlamentar de investigação caracterizou como uma operação de “compra hostil”. A administração dos novos donos continuou a espoliação, a ponto de hoje, em situação financeira praticamente insustentável, ter seu patrimônio avaliado em 200 mil dólares, que os empregados ofereceram-se para comprar, como forma de o controlador saldar parte da dívida salarial e trabalhista de 4 milhões de dólares com eles.
A greve de nove dias dos trabalhadores da LAB determinou, finalmente, a intervenção do governo. E o que pareceu ser a primeira iniciativa de peso do governo Evo parece também, por outro lado, dar o tom da timidez, mais que qualquer cautela, da ação desse mesmo governo frente à sanha predatória empresarial, incluído aí o saqueio dos direitos dos trabalhadores.
Lembro-me que, numa entrevista, o Prof. Carlos Lessa, primeiro (e incômodo) presidente do BNDES do governo Lula, observava que o banco que ele dirigia devia se preocupar em eventualmente salvar empresas, não em salvar empresários. Claro que o governo Lula jamais esteve à altura do Prof. Lessa, mas é através de lógicas singelas como essa que aprendemos a reconhecer a forma de ação de determinados governos. No caso LAB, Evo preferiu “tirar o corpo fora”. Tanto ele como o Vice-Presidente insistiram no argumento de que o caso LAB era apenas e tão simplesmente uma questão trabalhista, e que o governo não poderia arcar com um peso morto, enquanto alguns setores do MAS aventavam que uma intervenção radical no sentido de recuperar um patrimônio público seria um precedente perigoso que violaria a segurança jurídica. Com isso o governo decretou apenas uma intervenção regulatória, para determinar, em 90 dias, por meio de uma auditoria, se a empresa tem condições de continuar funcionando, sem que isso signifique qualquer risco para o controle patrimonial do seu atual dono.
O caso LAB e suas investigações pelas autoridades do executivo e do legislativo em gestões anteriores já produziram pedidos de processos judiciais diversos contra todos os seus controladores e ex-controladores privados e uma enormidade de outros executivos, assessores e fiscalizadores. O “famoso” judiciário boliviano jamais acolheu qualquer desses processos, e a auditoria de Evo muito provavelmente vai também cair no vazio. Com isso, Evo sanciona, também ele, as velhas regras do jogo da selvageria neoliberal e do saqueio patrimonialista dos bens públicos. Esse sim parece ser um precedente perigoso para um governo que se quer progressista e que deve seu sustento político mais imediato ao embate vitorioso das forças populares em maio-junho de 2005, que firmaram o imperativo político da nacionalização dos recursos energéticos, consagrado com a queda do Presidente Carlos Mesa. O governo de Evo sinaliza de forma cada vez mais significativa para um acomodamento e mesmo a subtração dessas demandas. Se não foi capaz de enfrentar sequer uma moribunda empresa aérea, seguramente não será capaz de enfrentar poderosas transnacionais do petróleo.
Nota:
(1) Os dados que se seguem têm como fonte o quinzenário “El Juguete Rabioso” ano 6 número 147, de 12 a 26 de fevereiro de 2006.
Ricardo Cavalcanti-Schiel
Há exatamente um mês, o estado da imprensa internacional com relação aos acontecimentos políticos na Bolívia era de franca excitação. Como fenômeno de mídia, a posse do Presidente Evo Morales só encontrou similar próximo neste país por ocasião da morte do Che, em 67. Como comentava um jornal local, a Bolívia, por alguns dias, se transformava na meca da esquerda mundial. De fato, ver no balcão do palácio presidencial, assitindo a um desfile de tropas, Evo ao lado do Comandante Chávez e do legendário Comandante salvadorenho Schafik Handal não deixava de ser tocante para qualquer um que guarde alguma veleidade socialista latinoamericana. Lula, claro, preferiu ir para o hotel, para se preparar para o coquetel que se serviria mais tarde, enquanto Evo sairia dali, escoltado por uma guarda de mineiros e índios, para uma festa popular embandeirada pelas flâmulas das organizações sociais bolivianas, na legendária praça de San Francisco, palco irremediável de qualquer batalha campal que se trave em La Paz por conta de algum protesto popular (é certamente a praça mais “gasificada” do mundo ? como os bolivianos usam dizer quando se referem ao gás lacrimogênio.
A comoçao daquele momento, no balcao de um palácio governamental que um dia foi incendiado numa dessas rebeiões costumeiras da história política boliviana, seria ainda mais significativa quando se soube, depois, que aquela tinha sido a última aparição pública do Comandante Schafik, pois ele morreria, fulminado por um ataque cardíaco no momento em que o avião de volta a seu país aterrizava em San Salvador.
Momentos comoventes, sem dúvida. No dia anterior, Evo havia passado por um rito político-exotérico nas ruínas de Tiawanaku, mas sequer isso ganhou um tom caricatural, como uma encenação exotérica similar, feita por Alejandro Toledo nas ruínas de Machu Pichu, ao assumir a presidência do Peru em 2001, como que prenunciando a caricatura que viria a ser o seu próprio governo, melancolicamente epilogado, agora, por um tratado de livre comércio com os Estados Unidos, que ameaça atar o futuro do Peru a uma agenda comercial que o colocará ao largo da Comunidade Andina e, obviamente, do Mercosul e da América do Sul. E a cerimônia em Tiawanaku só não foi mais uma caricatura porque ali não estava um “cholo” querendo redimir sua parcela de “sangue indígena” como se fosse uma grife, mas alguém que se forjara nas lutas populares, que jamais se rendera a uma garrafa de whisky numa reunião com a direção de uma Rede Globo, e que dava mostras de que poderia até se equivocar, mas não trair suas origens, seus companheiros e seus programas históricos. E também não foi uma caricatura porque ali os movimentos populares de várias partes do mundo e muitos movimentos indígenas saudavam algo que toda essa gente muito escassamente tem a oportunidade de saudar: um representante seu no poder. Toda a posse de Evo foi, mais que tudo, isso: uma festa da representatividade; e não um rapapé do clube do poder das velhas elites oligárquicas das nossas republiquetas continentais (e não importa o tamanho territorial dessas republiquetas).
Como antropólogo que há vários anos pesquisa na Bolívia, que acompanhou todas as “guerras” populares (a da água, a do sal, a do gás) que derrocaram a república neoliberal e a democracia pactada, que estava no campo, em uma comunidade indígena, quando esses mesmos indígenas bloquearam todas as estradas do país para defenestrar o “gringo” Gonzalo Sánchez de Lozada nas jornadas de outubro de 2003 (e que não foi retirado do país pelo avião da FAB), acompanhei atentamente também ese momento, permitindo-me minha quota particular de comoção, mas também temperado pelo distanciamento crítico, tendencialmente objetivista, que se aprende a cultivar quando se é antropólogo e quando se convive com as especificidades da cultura política (ou das culturas políticas) deste país. Havia chegado alguns dias antes das eleições, e pude acompanhar, pela televisão do quarto de hotel em Cochabamba, a transmissão local ao vivo do comício de encerramento de campanha de Evo, debaixo de chuva. De lá para cá as chuvas têm fustigado a Bolívia, caindo com especial intensidade nesta estação naturalmente chuvosa, causando desabamentos na área montanhosa, inundando regiões no oriente baixo e plano do país, e fazendo o próprio Evo andar de helicóptero para lá e para cá. Neste momento, quando escrevo estas linhas, na sala de pesquisa das modernas instalações da Biblioteca Nacional, na velha, modorrenta e socialmente decadente antiga capital, Sucre, também nuvens intensamente escuras avançam desde os cumes do Churuquella, grande maciço montanhoso que os antigos indígenas reportavam como uma divindade. Esses mesmos indígenas andinos acreditam ou acreditavam que a sucessão das eras ocorre de uma forma cataclísmica, como uma reviravolta de mundos, um “pachakuti” (literalmente, em quéchua, “volteio do mundo”), na qual muitos relatos míticos costumam apontar a incidência de um elemento em especial, o fogo; de tal forma que erupções vulcânicas nos Andes já foram reconhecidas como a virtual emergência de um “pachakuti”. Concepções cosmológicas como essas cultivaram um fundo de milenarismo em muitas concepções políticas andinas, que, ora aqui ora acolá (basta ler o clássico “Buscando un Inca”, de Alberto Flores Galindo), insistem em se manifestar na história política dessas sociedades, e têm, como seu correlato discursivo, um notável vezo mesiânico. Mas, de fato, o que marca uma verdadeira reviravolta é o fogo, e não toda esta água que cai sobre a Bolívia.
Há um mês da posse de Evo, também se arrefeceu, naturalmente, a curiosidade da imprensa internacional, e em lugares como a internet permanece ressoando, aqui e ali, um texto comovido de Eduardo Galeano, sobre este momento “étnico” de especial atração da vida política boliviana (como se toda ela não fosse “etnicamente” marcada, sulcada, lanhada), enquanto a chuva cai, insistentemente, sobre essa Macondo no coração da América, dissolvendo grossas paredes de adobe, sejam camponesas sejam senhoriais, porque ambas, muitas vezes, usam o mesmo material. Claro, não é a mesma chuva que metaforicamente cobria, como uma nuvem sufocante de mistificação, a Argentina menemista, na antológica ilustração que lhe fez o cineasta Pino Solanas. Mas é uma chuva que, arrefecidos também eventuais ânimos messiânicos, nos faz pensar sobre a orteguiana (ou macondiana?) circunstância das nossas sociedades latinoamericanas.
Passado um mês da posse de Evo, nomeado um gabinete extremamente heterogêneo, em nome (supõe-se) de uma representatividade social ampliada, mas pouco ou nada articulado com um programa de governo, e conhecidos os primeiros movimentos táticos da velha direita, acantonada agora junto à oligarquia empresarial e latifundiária de Santa Cruz, no oriente do país, parece cada vez mais instigante perguntar-se por que um presidente eleito com a mais arrazadora votação proporcional dos últimos 30 anos de história boliviana, liderança inconteste de um partido que conquistou 55,4% da Câmara dos Deputados, 44,4% do Senado (totalizando 53,5% do Congresso), além da presidência dessas duas casas, parece iniciar o seu governo destituído de iniciativa política e surpreendentemente acossado pelas reivindicações autonomistas da oligarquia de Santa Cruz, quando, por outro lado, ascendeu ao poder catapultado pelas expectativas de uma agenda de transformações, explicitada de forma muito contundente pelos movimentos populares nos últimos 5 anos, que derrubou dois presidentes da república e que conquistou uma efetiva hegemonia discursiva na agenda política nacional. Não se pode dizer que, como Hernán Siles Suazo em 1982, o mais esquerdista dos presidentes eleitos pelo velho e hoje moribundo Movimento Nacionalista Revolucionario (MNR), Evo tenha se deparado com uma situação macro-econômica frágil e desequilibrada, que dê campo de ação a um “golpe de Estado empresarial”, como ocorreu com o próprio Siles Suazo e com Alfonsín, na Argentina, pois os indicadores estritamente financeiros de desempenho geral, de déficit fiscal e de inflação indicam o contrário. Tampouco enfrenta-se com um feroz patrulhamento da esquerda sindical, como fazia a Central Obrera Boliviana (COB) naquele início de década de 80, nem com uma posição pouco confortável no Congresso, pois, pela primeira vez na história democrática boliviana, um só partido, o Movimiento al Socialismo (MAS), de Evo, detem o controle do Legislativo, sem necessitar de coalizões. ¿Qué pasa? Então, com relação a esses primeiros sinais do pré-incensado governo de Evo Morales?
Em agosto do ano passado, às vésperas da campanha eleitoral, o sociólogo Alvaro García Linera, ex-guerrilheiro, ex-preso político, intelectual perspicaz, mais destacado ideólogo do MAS e atual Vice-Presidente da República, publicava um artigo numa coletânea, em que anotava a respeito das eleições vindouras: “Está claro que nenhum líder nem movimento sócio-político vai conseguir por si só superar a marca de 20% do eleitorado nacional”. Por isso, García Linera imaginava uma ação de conformação de frentes parlamentares e o que ele chamou de uma “estratégia expansiva de acumulação de forças políticas”. Evo obteve 54% da votação, o MAS conquistou o controle do Congresso,e, mesmo em Santa Cruz, reduto da direita, onde o candidato presidencial do MAS foi demonizado mais que em qualquer outra parte, o partido obteve um terço dos votos (contra apenas 18% nas eleições municipais de 2002), apenas 9% atrás da votação da direita. Há poucos meses da eleição, ao que tudo indica, o MAS não esperava chegar ao poder por uma autopista tão bem pavimentada. É como se a vitória chegasse a descompasso dos planos políticos mais otimistas. Para um partido fundado sobre lutas reivindicatórias e um programa que parece, antes, um conjunto de palavras de ordem, a vitória eleitoral parece até ter chegado rápido demais.
Nesse mesmo ensaio, García Linera considerava que naquela “estratégia expansiva de acumulação de forças políticas”, para um movimento social que se assenta sobre a base material da economia familiar e com escassos horizontes de experiência gerencial mais ampla que, eventualmente, o sindicato, era preciso consolidar um “suporte administrativo” que expressasse experiências próprias de gestão, pois “o tema do poder estatal não é tão somente um tema de resistência, mas de soberania geral; não é um tema de reivindicação, mas de comando e execução da coisa pública”. Diferentemente do caso de um PT, por exemplo, que, sob a batuta de um gângster stalinista como José Dirceu, sacrificou todo o seu capital político-administrativo em nome de um estrito e estreito projeto de poder, o MAS simplesmente não dispõe desse mesmo capital. Claro que o argumento da “experiência administrativa”, seja num sentido positivo (“nós temos!”) seja num sentido negativo (“eles não têm!”), é extremamente traiçoeiro, e que a política não se reduz, de maneira alguma, à simples execução da técnica ou, na melhor das hipóteses, de uma “técnica do bom governo”. Na verdade, problemas podem surgir exatamente quando política e técnica entram em rota de colisão para definir seus domínios de competência, e pode-se dizer que constituem-se em duas classes de mistificação simétricas tanto a presunção de que a técnica possa gerenciar a política quanto a demagogia de que a política possa dispensar a técnica.
Durante todo o período das chamadas “reformas estruturais”, a arenga neoliberal propugnava o receituário ortodoxo da economia neoclássica, que, aplicado corretamente, seria a chave do paraíso para o progresso econômico “e” social. O império dos técnicos deu passo a uma concepção de execução da política e gestão da coisa pública caracteristicamente verticalizadas, onde algumas centenas de milhões de dólares foram gastos com consultorias e nenhuma atenção dada à consulta social. Obviamente, isso também se insere na lógica oligárquica do mais profundo desprezo por uma eventual democratização social, mas no período neoliberal esse requinte de tecnicismo deu origem a uma casta de intelectuais subservientes e uma malta de técnicos de gabinetes, alimentados tanto por gordos salários financiados pelas agências internacionais quanto pela onipresente corrupção boliviana. É absolutamente compreensível que toda a militância do MAS nutra por essa gente a mais profunda desconfiança. Entretanto, uma coisa é pôr os técnicos em seu lugar, outra é recusar sumariamente a técnica.
Uma das atitudes mais impressionantes da militância do MAS após a ssunção de Evo foi a de tomar alguns gabinetes governamentais e expulsar de lá os seus ocupantes, achando-se na condição de proprietários senhoriais do governo. No fundo, essa atitude apenas replicava, de forma um tanto mais grotesca, o que sempre fez o velho clube do poder oligárquico, com seu loteamento de cargos e seu usufruto patrimonialista da máquina do Estado. No entanto, soa no mínimo desconcertante que um partido que tantas vezes falou em institucionalizar essa mesma máquina pública agora resolva assaltá-la com seus quadros. E essa tem sido uma desagradável constante nos movimentos de bastidores masistas, já não mais como uma farsa bonapartista de assalto ao palácio de inverno, mas sob a forma de uma surda luta de posições (com fortes tintas individualistas e caudilhescas) no interior do partido, para ocupar os espaços da máquina pública. E aqui entra em cena um outro componente não apenas masista, mas que percorre, de forma às vezes sutil às vezes gritante, boa parte da pregação política indígena: a marca de um fundamentalismo etnicista. E aqui o melhor caminho para entendê-lo é retomar aquelas observações aventadas logo antes sobre a persistência de traços milenaristas e messiânicos num certo discurso político andino (ou andinista). O que eles conformam é expresso sob a forma de uma retórica do retorno radical a uma pureza índia, vislumbrada na imagem ideal de um Tawantinsuyu (o império incaico) reconstruído, ou um Qullasuyu (o quadrante meridional, ou seja, boliviano, desse império) reconstruído. E isso é equacionado como um Estado índio depurado de “q’aras” (“brancos”, num sentido pejorativo). A presença desse fundamentalismo etnicista no MAS não é desprezível e, na verdade, joga um peso considerável no complexo de tensões que abarca as disputas internas em torno da ocupação da máquina do Estado. Um dos assessores mais próximos de Evo, considerado por alguns o Rasputin do governo, um homem das sombras chamado Ivan Iporre, é uma das peças-chave dessa linhagem fundamentalista. Ninguém chega a Evo sem passar por ele, e ele é também homem da imediata proximidade de um desses profetas políticos obscuros do milenarismo messiânico, o peruano Carlos Milla, que exerce notável influência em certo meio universitário de El Alto, bastião da guerra do gás que derrubou Gonzalo Sánchez de Lozada. Teria sido essa vertente que idealizou a cerimônia de Tiawanaku, para Evo receber as bênçãos dos sacerdotes amawtas.
Mas o efeito concreto desse fundamentalismo etnicista, fortemente anti-intelectualista, orientado ou difuso, no governo do MAS, é que sua invectiva de pureza índia, somada às disputas corporativas internas, conspiram para tornar a máquina pública uma grande colônia de fiéis, que alguns poucos conhecedores críticos da situação pejorativamente se referem como um “talibanato”, a expensas dos quadros técnicos. O resultado previsível é que o delineamento de políticas passa então a “escorrer” de uma necessária precisão técnica para uma etérea imprecisão de populismos e imediatismos duvidosos. A definição dos quadros de governo, hoje, encontra-se nesse pé, em meio a um jogo de tensões de bastidores, que ninguém ainda sabe em que vai resultar. Alguns ministérios parecem estar imobilizados, em suspensão, como o Ministério da Educação, que se opõe à Reforma Educacional implantada nos governos neoliberais, mas não tem nenhuma proposta alternativa, não mobiliza seus técnicos, que conhecem à exaustão o manejo do sistema educacional, tampouco outros possíveis colaboradores com qualificação e experiência técnica, independentes e antagônicos ao atual modelo, e sujeita-se a receber uma proposta fechada da CSUTCB (Confederación Sindical Única de los Trabajadores Campesinos de Bolivia).
Na verdade, não são pequenos os riscos de o governo Evo degringolar numa indefinição populista. Contra isso conta sua âncora de racionalidade, o Vice-Presidente. Se o governo conseguir incorporar quadros técnicos, não para reiterar o modelo do sistema neoliberal, mas para colocá-los nos seus devidos lugares, possibilitando espaços de mediação com as demandas políticas e otimizando a racionalidade da gestão pública, certamente terá vencido um dos seus maiores desafios, poderá pensar séria e conseqüentemente na institucionalização da máquina pública e, com uma vigilância política decidida, romper o círculo vicioso de corporativismo e patrimonialismo. Ninguém sabe se isso é efetivamente factível, e a cultura política boliviana não inspira nenhum otimismo nesse sentido. Em não muito tempo saberemos se, para além da titânica tarefa legislativa, “refundar” o país por meio de uma nova constituição, o governo Evo mostrará sua viabilidade administrativa, sua capacidade de iniciativa política e a possibilidade efetiva de condução de um programa de transformações sociais. Por enquanto, a Bolívia, sob chuva, está em compasso de espera.
O caso LAB
Neste primeiro mês de governo Evo, o acontecimento nacional mais marcante além das chuvas foi a crise da empresa aérea mais importante do país, a LAB (Lloyd Aereo Boliviano). De todas as privatizações realizadas pelo “gringo” Gonzalo Sánchez de Lozada, a da LAB foi a mais escandalosa negociata de alienação do patrimônio público, a ponto de tornar-se, na prática, uma cessão patrimonial a fundo perdido. Com um patrimônio calculado em 66 milhões de dólares à época da privatização (1), foi entregue a velhos conhecidos das páginas policiais brasileiras, os Canhedo, controladores da Vasp. As investigações realizadas por técnicos governamentais à época da presidência de Carlos Mesa indicam que Sánchez de Lozada cedeu a todas e quaisquer exigências dos Canhedo, alterando contratos e emitindo decreto atrás de decreto para adequar-se às demandas dos nossos nobres empresários privados, que, em pagamento e cumprimento de suas obrigações entregaram... papéis podres. Durante os cinco anos em que permaneceu nas mãos dos Canhedo, a LAB foi impiedosamente dilapidada. Acossados por uma campanha midiática igualmente impiedosa, os Canhedo viram-se obrigados a vender seu pacote acionário por 1 milhão de dólares ao empresário de mídia dono do jornal La Razón (velho bastião da direita mais conservadora) e da rede de televisão ATB, no que uma comissão parlamentar de investigação caracterizou como uma operação de “compra hostil”. A administração dos novos donos continuou a espoliação, a ponto de hoje, em situação financeira praticamente insustentável, ter seu patrimônio avaliado em 200 mil dólares, que os empregados ofereceram-se para comprar, como forma de o controlador saldar parte da dívida salarial e trabalhista de 4 milhões de dólares com eles.
A greve de nove dias dos trabalhadores da LAB determinou, finalmente, a intervenção do governo. E o que pareceu ser a primeira iniciativa de peso do governo Evo parece também, por outro lado, dar o tom da timidez, mais que qualquer cautela, da ação desse mesmo governo frente à sanha predatória empresarial, incluído aí o saqueio dos direitos dos trabalhadores.
Lembro-me que, numa entrevista, o Prof. Carlos Lessa, primeiro (e incômodo) presidente do BNDES do governo Lula, observava que o banco que ele dirigia devia se preocupar em eventualmente salvar empresas, não em salvar empresários. Claro que o governo Lula jamais esteve à altura do Prof. Lessa, mas é através de lógicas singelas como essa que aprendemos a reconhecer a forma de ação de determinados governos. No caso LAB, Evo preferiu “tirar o corpo fora”. Tanto ele como o Vice-Presidente insistiram no argumento de que o caso LAB era apenas e tão simplesmente uma questão trabalhista, e que o governo não poderia arcar com um peso morto, enquanto alguns setores do MAS aventavam que uma intervenção radical no sentido de recuperar um patrimônio público seria um precedente perigoso que violaria a segurança jurídica. Com isso o governo decretou apenas uma intervenção regulatória, para determinar, em 90 dias, por meio de uma auditoria, se a empresa tem condições de continuar funcionando, sem que isso signifique qualquer risco para o controle patrimonial do seu atual dono.
O caso LAB e suas investigações pelas autoridades do executivo e do legislativo em gestões anteriores já produziram pedidos de processos judiciais diversos contra todos os seus controladores e ex-controladores privados e uma enormidade de outros executivos, assessores e fiscalizadores. O “famoso” judiciário boliviano jamais acolheu qualquer desses processos, e a auditoria de Evo muito provavelmente vai também cair no vazio. Com isso, Evo sanciona, também ele, as velhas regras do jogo da selvageria neoliberal e do saqueio patrimonialista dos bens públicos. Esse sim parece ser um precedente perigoso para um governo que se quer progressista e que deve seu sustento político mais imediato ao embate vitorioso das forças populares em maio-junho de 2005, que firmaram o imperativo político da nacionalização dos recursos energéticos, consagrado com a queda do Presidente Carlos Mesa. O governo de Evo sinaliza de forma cada vez mais significativa para um acomodamento e mesmo a subtração dessas demandas. Se não foi capaz de enfrentar sequer uma moribunda empresa aérea, seguramente não será capaz de enfrentar poderosas transnacionais do petróleo.
Nota:
(1) Os dados que se seguem têm como fonte o quinzenário “El Juguete Rabioso” ano 6 número 147, de 12 a 26 de fevereiro de 2006.