NAS ENTRELINHAS                                 


RESISTÊNCIA INDÍGENA

de Memélia Moreira

Wednesday, March 17, 2004

Fome, resultado da intolerância

Azelene Kaingáng*

A questão da fome entre os Povos Indígenas do Brasil é um dos mais graves problemas por eles enfrentados. A insegurança alimentar atinge principalmente as comunidades do Nordeste, Centro-Oeste e Sul do país, onde as terras indígenas são insuficientes e, na sua maioria, estão invadidas por não-indígenas – o que viola frontalmente o direito indígena ao usufruto exclusivo de suas terras, garantido pela Constituição Brasileira de 1988.

Soma-se à insuficiência territorial a ausência de políticas públicas que realmente contemplem e incluam os Povos Indígenas, que possibilitem que produzam seus próprios alimentos, de acordo com as suas diferenças culturais e territoriais. Os recursos do orçamento da União são escassos e não contemplam políticas públicas específicas que visem garantir a essa parcela da população uma qualidade de vida razoável em suas próprias terras. É necessário compreender que, além da demarcação das terras indígenas, há que se assegurar recursos suficientes para a formulação e execução de projetos de desenvolvimento sustentável para os Povos Indígenas.

Nas comunidades indígenas, quem mais sofre com a falta de alimentação adequada são as crianças de 0 a 7 anos e as mulheres, porque a fome da criança é o reflexo da condição nutricional da mãe. Quando uma mãe está desnutrida é porque suas crianças também estão, já que ela não come sem antes alimentá-las.

Em 2002, foi realizado um estudo pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa), com crianças indígenas de 0 a 6 anos do Pará e Tocantins. Foram analisadas 1.350 crianças, das quais aproximadamente 28% apresentaram risco nutricional e desnutrição, um percentual duas vezes maior que a média nacional.

Por outro lado, em audiência pública em 2002, um dono de hospital no Rio Grande do Sul afirmou que 232 crianças, na faixa etária de 0 a 14 anos, haviam sido internadas por desnutrição. Esses dados não mudaram muito, já que o ano de 2003 foi um dos mais difíceis para os Povos Indígenas do Brasil, tendo em vista os conflitos por retomada de terras, instabilidade na política indigenista e falta de recursos para implantação de programas que minimizem problemas sérios de fome e de pobreza entre essa população.

Exemplo sombrio

O que tem deixado as lideranças indígenas perplexas é a reação de elites brasileiras, como empresários(as), políticos(as), fazendeiros(as) etc – incluindo aí seguimentos do governo federal –, que continuam adotando o discurso intolerante e preconceituoso de que índio é preguiçoso e um atraso para o desenvolvimento do país.

Vide, por exemplo, o que está acontecendo com a Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Localizada no estado de Roraima, são 1,6 milhão de hectares que abrigam uma população de cerca de 15 mil pessoas pertencentes aos povos macuxi, wapichana, ingarikó, tauarepang e patamona. Há mais de 30 anos, essas comunidades lutam para que suas terras sejam reconhecidas definitivamente. Vários entraves foram criados pelo governo estadual para impedir a homologação da área – como a criação do município de Uiramutã, promulgado inconstitucionalmente em 1995 dentro dos limites de Raposa Serra do Sol.

Em 23 de dezembro de 2003, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, anunciou que finalmente a terra seria homologada pelo governo federal em janeiro deste ano. A partir daí, os fazendeiros, que cultivam arroz na região, com apoio da prefeitura de Uiramutã, passaram a impetrar toda sorte de violência na tentativa de reverter a situação, de saques a invasões e seqüestros de membros da comunidade, de funcionários(as) da Fundação Nacional do Índio (Funai), do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e missionários do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Paralelamente, há uma franca campanha dos meios de comunicação de massa e das elites contra a homologação, desconsiderando a presença histórica dos Povos Indígenas na região. Segundo a assessoria de imprensa do Cimi, apesar de todas as campanhas articuladas pela sociedade civil em prol das populações, ainda não há previsão do governo sobre a nova data de homologação.

O programa Fome Zero não tem atingido satisfatoriamente os Povos Indígenas. O cadastramento – iniciado em 2003, com o objetivo de incluir de forma emergencial os Povos Indígenas em risco nutricional – até agora contemplou algumas poucas comunidades no Sul e no Centro-Oeste brasileiro, porque tem sido feito pelas prefeituras. Estas, em geral, não gostam de lidar com os índios por conta dos conflitos locais com o poder econômico e político na luta pela terra. Nesses casos, eles raramente são beneficiados.

O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) apresentou uma proposta para que as famílias indígenas tivessem um cadastramento diferenciado, realizado por Funai e Funasa. A portaria ainda está emperrada na burocracia da Funai.

Por outro lado, a grande reivindicação dos Povos Indígenas é de que tenham suas terras demarcadas para não dependerem de programas sociais, como esse, que dificilmente atingirão as pessoas que realmente necessitam.

Em 2003, as lideranças indígenas apresentaram ao Ministério do Desenvolvimento Agrário a proposta de realização de 19 oficinas por todo o país, para que as comunidades indígenas tivessem a oportunidade de propor uma política pública de segurança alimentar e desenvolvimento sustentável. Foram realizadas 17 das 19 oficinas e, no dia 27 de novembro de 2003, aconteceu o Fórum Nacional de Segurança Alimentar para os Povos Indígenas, quando foi aprovado um documento, entregue ao Palácio do Planalto e ao Congresso Nacional. Sua principal reivindicação é a regularização fundiária, a demarcação e homologação das terras indígenas (disponível em www.institutowara.org.br, link documentos).

Importante ressaltar que a entrega desse documento à cúpula do governo resultou na abertura do diálogo há muito esperado pelos Povos Indígenas com o governo federal que, como reação imediata às reivindicações, criou um Grupo de Trabalho formado pelos principais ministérios que trabalham com a questão (Meio Ambiente, Justiça, Desenvolvimento Agrário, Saúde, Educação, Relações Exteriores, entre outros), coordenado pelo Ministério da Justiça e Secretaria Geral da Presidência da República. O grupo contará com a participação de 14 representantes das principais organizações indígenas do país , e terá como responsabilidade maior a redefinição e o redirecionamento da política indigenista do Brasil.

O documento final do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Desenvolvimento Sustentável para os Povos Indígenas será defendido por 17 lideranças, indicadas por suas organizações, na II Conferência Nacional de Segurança Alimentar, que acontecerá de 17 a 20 de março de 2004 em Olinda/PE.

*Socióloga, presidenta do Warã Instituto Indígena Brasileiro e membro do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea)