NAS ENTRELINHAS                                 


CARTA ABERTA

de Memélia Moreira

Terça-feira, Maio 04, 2004

Nenhures, 3 de maio de 2004

Pouco mais de seis reais é quanto 16 milhões de brasileiros, que recebem o salário-mínimo, podem gastar por dia para comer, vestir-se, pagar transporte, escola, médico, remédios. O novo salário-mínimo, o primeiro que foi calculado a partir do orçamento elaborado pelo governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva continua abaixo da meta dos cem dólares, que se transformou em fetiche da antiga oposição. São agora R$ 260,00. Nenhuma autoridade ficou ruborizada ao anunciar essa quantia.
As alternativas para esse contingente populacional que conta com seis reais diários para a manutençãoo de sua sobrevivência são poucas. Ou ingressam nas tropas cada vez mais numerosas do narcotráfico, ou partem para as caminhadas e ocupações do Movimento dos Sem Terra. Em qualquer uma delas, esses brasileiros enfrentarão forças militares ou para-militares, de acordo com a situação, e suas vidas vão valer pouco mais que nada.
Criado por Getúlio Vargas há mais de 60 anos, o salário-mínimo foi, durante sua existência se desidratando, perdendo consistência. Vilipendiado. Hoje nada mais é do que um mínimo salário que a Constituição de 1988 tentou resgatar, mas esbarrou nos cálculos de superávits primários, pagamentos de juros da dívida, e outras cabalas incompreensíveis para quem quer apenas comprar arroz, feijão, pão e, de vez em quando um macarrão.
Lula recusou-se a falar depois do vexame. Só na segunda-feira de manhã, quatro dias depois de provocar perplexidade e indignação naqueles que ainda esperam algum sinal, por menor que seja, de que o governo do Partido dos Trabalhadores nesses seus 24 anos de existência não estava apenas blefando quando prometia reduzir as injustiças sociais, ele resolveu se pronunciar. Lula não queria perguntas incômodas e se preservou para seu programa semanal retransmitido pelas rádios (onde não há o contraditório dos jornalistas e ele pode falar "n´importe quoi?", usando essa sarcástica expressão francesa) para explicar porque o salário mínimo continua sendo uma miragem. Disse o presidente que elevar o salário-mínimo para 300 reais seria uma "total irresponsabilidade nossa". E foi buscar a surrada desculpa (lá vem chavão) de que um salário-mínimo mais elevado provoca mais rombo na Previdência.
Ora, bolas. Até mesmo Lula sabe que o rombo da Previdência tem outras raízes. Já cobrou os grandes devedores? Claro que não! Os grandes devedores são também grandes financiadores das caixinhas de campanha. Isso só para falar das dívidas dos grandes empresários. Há outros fatores na origem dessa sangria. E os gastos com as passagens de avião para que a ''nomenklatura'' petista passe seus fins de semana em suas cidades de origem? Será que economizando 1,2 bilhões por ano já não seria suficiente para abater esse tão citado "rombo da Previdência"?. E o avião cheio de mimos e luxos encomendado pela presidência da República para que Lula faça seu turismo à bordo de um confortável Airbus com banheira, será que não podia usar a grana para abater o rombo?
Coincidência ou não, no mesmo dia que Lula se disse chefe de um governo responsável, o chefe da missão do Fundo Monetário Internacional, Phil Gerson, que está visitando o Brasil nesse momento, depois de uma reunião no Banco Central, disse que estamos nos comportando com muita responsabilidade, que o Brasil "está fazendo progresso importante na economia". Pronto, a responsabilidade do presidente da República Federativa do Brasil está salva. Até o FMI reconhece o quanto é sério o governo brasileiro.
Essa responsabilidade agrada o Fundo Monetário, afinal de contas, pagaremos os juros dólar a dólar, não interessando se 16 milhões de brasileiros sejam obrigados a viver com R$ 6,50 por dia e mais dois milhões estejam desempregados. Honraremos a dívida. Custe o que custar.
Por que é que Lula, que quando acorda "invocado" telefona para Bush, conforme contou para a bancada do PTB num churrasco, não segue o exemplo dos Estados Unidos no trato com a dívida externa? É bem simples. Os sucessivos governos americanos não estão nem aí para as dívidas externa e interna do país que já' ultrapassaram a casa dos trilhões de dólares. Só para citar um exemplo, nos meses de maio e junho de 1987, o défict comercial dos EUA chegou a 160 bilhões de dólares. Hoje, esse déficit duplicou e nenhum governante americano dos últimos 30 anos cogitou sacrificar qualquer investimento para honrar sua dívida. E nenhum deles se preocupou de ser chamdo de irresponsável pelo FMI. Nós pagaremos.
Pois é, aí está o primeiro salário-mínimo petista puro-sangue. Que vergonha, companheiro!

Até a próxima

Memélia Moreira
Editora

P.S. O episódio no qual Lula falou para a bancada do PTB que um dia "acordou invocado" e telefonou para o Bush (Bush, George Bush, presidente dos Estados Unidos) foi, no mínimo, mais uma demonstração do deslumbramento e primarismo político do presidente. Ainda bem que o povo sabe que "quem nunca comeu mel, quando come se lambuza".