NAS ENTRELINHAS                                 


RESISTÊNCIA INDÍGENA

de Memélia Moreira

Tuesday, April 20, 2004

Nas entelinhas recomenda a leitura do texto que se segue sobre o recrudescimento da campanha contra a homologação de Raposa/Serra do Sol em área contínua, nos mesmos termos em que foi feita a campanha contra a demarcação da Terra Indígena Yanomami, há 13 anos



Alguns esclarecimentos sobre a Questão Indígena em Roraima

Jorge Bruno Souza

Nesse momento em que se discute a homologação da Terra Indígena Serra do Sol em Roraima, os conhecidos interesses antiindígenas tentam distorcer informações acerca da situação daquele Estado como estratégia para impedir a afirmação dos direitos constitucionais dos povos indígenas às terras por eles ocupadas.
A mensagem que circula na internet de uma suposta pessoa surpreendida com a situaçãoo fundiária do Estado de Roraima, em especial com as áreas reservadas legalmente para os povos indígenas e para conservação ambiental e com a presença de norte-americanos na região, tentar criar um clima desfavorável à defesa dos direitos indígenas, tal qual o que ocorreu durante a Assembléia Constituinte de 1988 quando o jornal O Estado de São Paulo divulgou um suposto complô de organizações estrangeiras por traz da defesa das terras indígenas, denúncia esta forjada por políticos que queriam impedir o reconhecimento dos direitos indígenas às suas terras na Constituição Federal. Recorde-se ainda da polêmica sobre a demarcação da Terra Indígena Yanomami, quando esses índios foram também acusados de estar a serviço dos interesses dos Estados Unidos da América mas na verdade queriam apenas ver seu secular território resguardado da pilhagem de garimpeiros e madeireiros que os matavam e destruíam suas matas.
De tempos em tempos surgem denúncias como essa ora divulgada, em cuja origem - é fácil perceber - não há qualquer preocupação com o bem estar da população brasileira ou com a soberania nacional. Parte, em geral, de pessoas que sempre defenderam a submissão do Brasil aos interesses estrangeiros, de políticos que nunca se preocuparam em defender a propriedade sobre os bens e recursos ambientais e minerais existentes em nosso território, de empresários inescrupulosos que destroem florestas e rios em empreendimentos que não geram qualquer riqueza para o país.
É comum que os porta-vozes dos interesses antiindígenas afirmem que a destinação de terras para os povos indígenas constituem obstáculo ao desenvolvimento. Mas de que desenvolvimento falam? Para essas pessoas desenvolvimento é sinônimo de concentração populacional, de destruição da natureza, de poluição, posto que são incapazes de pensar em condições dignas de vida, em sustentabilidade social e ambiental, etc..
Essas críticas aos direitos indígenas e ambientais não são novas, antes mera repetição do discurso das lideranças políticas e empresariais roraimenses que querem colocar a população brasileira contra os povos indígenas e os ambientalistas.

Creio, todavia, que é necessário esclarecer algumas informções.

1. O que dizem: Setenta por cento do território do Estado de Roraima estão reservadas para unidades de conservação ambiental e terras indígenas

Os fatos: Roraima é um Estado recente, criado pela Constituição de 1988, sua população segundo o censo demográfico do IBGE de 2000 era de apenas 324.389 habitantes, sendo que mais de 60% destes vivendo na capital, Boa Vista. A área total do Estado perfaz mais de 225 mil quilômetros quadrados, com densidade demográfica de 1,44 por km2. Sua localização, no extremo Norte do país, e seu relativo isolamento, favoreceu a preservação ambiental de grande parte de seu território. Somente a partir das últimas décadas do século passado é que pecuaristas e agricultores (em geral, migrantes de outras regiões do país) chegaram em maior número. Segundo o Ministério do Desenvolvimento Agrário a União dispõe de mais de 5 milhões de hectares para realizar assentamentos rurais. Vê-se pois que não há problema de falta de terras para os agricultores de Roraima.
Por outro lado, os povos indígenas em Roraima são cerca de 40.000 pessoas, quase metade da população não-citadina do Estado.

2. O que dizem: Na única rodovia que existe em direção ao Brasil (liga Boa Vista a Manaus, cerca de 800km) existe um trecho de aproximadamente 200km (reserva indígena Waimiri Atroari) por onde você só passa entre 6:00 da manhã e 6:00 da tarde, nas outras 12 horas a rodovia é fechada pelos índios (com autorização da FUNAI e dos americanos) para que os mesmos não sejam incomodados. Detalhe: você não passa se for brasileiro, o acesso é livre aos americanos, europeus e japoneses.

Os fatos: A Terra Indígena Waimiri-Atroari abriga um dos povos que mais bravamente resistiu à tomada de suas terras, tendo por isso sofrido diversas chacinas que quase os exterminaram, reduzindo drasticamente sua populção. Nos anos setenta e oitenta do século passado parte de suas terras foram inundadas pela barragem de Balbina (um mega-empreendimento que consumiu bilhões de dólares dos cofres públicos e que produz um quase nada de energia hidroelétrica) e outra parte tomada pela Mineradora Paranapanema. A construção da BR-174 (Manaus *Boa Vista), que cortou praticamente ao meio suas terras, ocorreu em um ambiente de extremo autoritarismo, sem qualquer respeito ao povo que habitava aquelas terras há séculos, em muitas ocasiões o Exército chegou a se utilizar de armas para afastar os destemidos guerreiros Waimiri-Atroari.
Após conclusão da a rodovia, fruto de negociações entre os diversos órgãos estatais envolvidos e as lideranças indígenas, adotou-se o procedimento de permitir o trânsito rodoviário ao longo do dia para todos os veículos e à noite aos veículos de transporte coletivo, às viaturas policiais e ambulâncias, assim como, aos caminhões com carga perecível. Importante dizer que quem controla a passagem dos veículos são funcionários do Convênio Fundação Nacional do Indio-Eletrobrás, Programa Waimiri-Atroari, portanto sob controle do Estado brasileiro, e não os americanos como diz a mensagem.
Quanto a informação de que "estrangeiros" têm acesso livre a essa área, basta dizer que recentemente os Waimiri-Atroari reagiram com severidade à tentativa de um barco com turistas estrangeiros adentrar suas terras, prendendo os invasores e confiscando seus equipamentos, cuja liberação somente ocorreu com a chegada da Polícia Federal.

3. O que dizem: Os americanos e outros estrangeiros têm livre acesso às áreas indígenas.

Os fatos: A entrada de qualquer pessoa nas Terras Indígenas é regulada por Portaria da Fundação Nacional do Índio-FUNAI e pelas organizações indígenas. Além disso, os próprios índios estão cada vez mais preocupados com a possibilidade de terem seus conhecimentos tradicionais roubados, razão pela qual vêm buscando um maior controle desse acesso.
As lideranças indgenas e as organizações de apoio têm, desde longa data, denunciado a presença de pesquisadores, missionários e agentes estrangeiros nas Terras Indígenas e em outras áreas da Amazônia realizando pesquisas ilegais. Entretanto, muitos desses políticos que hoje se dizem preocupados com a soberania nacional e que controlavam os órgãos do Estado responsáveis pela fiscalizam dessas áreas nunca tomaram nenhuma atitude para coibir essas práticas, pelo contrário, eram seus aliados.

4. O que dizem: A maioria dos índios fala a língua nativa, inglês e francês, mas não o português. Na entrada de muitas reservas (sic) estão hasteadas bandeiras estrangeiras.

Os fatos: Trata-se de uma mentira fácil de se desmascarar, qualquer pessoa que conhe?a minimamente a realidade local pode atestar a falsidade dessa informação.
Felizmente os povos indígenas de Roraima conseguiram manter suas línguas nativas, o português, por outro lado, é falado pela maior parte deles visto que desse idioma necessitam em suas múltiplas relações com os vizinhos não-índios, com os comerciantes, com as muitas organizações brasileiras de apoio à causa indígena, com as agências do governo que atuam na área, e mesmo, como língua franca para índios de idiomas distintos. Alguns dos povos indígenas presentes no Estado de Roraima estão também presentes na República Cooperativa da Guiana, cujo idioma oficial é o inglês, que faz fronteira com aquele, assim alguns índios podem ter aprendido esse idioma, da mesma forma que no Acre é comum encontrar quem fale, além da língua nativa e do português, o espanhol, aprendido dos seus vizinhos bolivianos e peruanos.

5. O que dizem: Insinuam que os americanos estão se utilizando dos povos indígenas para se apoderar da região.

Os fatos: É inegável que as potências estrangeiras estejam interessadas na Amazônia, em seus ricos recursos minerais e ambientais, mas não se trata, como certos políticos querem sugerir, de uma tomada, a manu militari, de parte dos territórios dos países amazônicos. O real risco que corre nossas riquezas amazônicas está na privatização da Vale do Rio Doce (proprietária de várias áreas na Amazônia), em uma lei de patentes que não resguarde nossos direitos sobre a fauna e a flora brasileira e que não reconhe?a os conhecimentos tradicionais dos povos indígenas, na biopirataria, na exportação dos nossos recursos florestais e minerais, na falta de investimento em tecnologia para aproveitamento da biodiversidade amazônica, etc..
Ao contrário, os povos indígenas têm sido, ao longo de nossa história, os grandes guardiões das fronteiras brasileiras. No caso de Roraima, como diz o Prof. João Pacheco do Museu Nacional-RJ, "foi graças à ocupação indígena que o Brasil conseguiu assegurar o traçado atual das fronteiras. Roraima não seria parte de nosso território se não fossem os índios do lavrado (especialmente os Makuxi), que constituíram as verdadeiras "muralhas do sertão".
Por último, gostaria de recomendar a leitura do artigo do Prof. João Pacheco de Oliveira intitulado: "Os índios ameaçam a segurança nacional?", que muito pode ajudar a compreender as razões dessa absurda denúncia.